A Covid-19 e a perturbação do sono

Um destes sábados estava eu a folhear o Expresso quando me deparei com um artigo sobre as dificuldades das crianças em adormecer, que parecem ter-se agudizado neste tempo de isolamento.

Tenho conversado com alguns pais que partilham dificuldades das crianças em adormecer, em que a hora de ir para a cama nem sempre é aceite de forma pacífica.

A verdade é que esta hora pode prolongar-se mais agora, que as rotinas sofreram alterações profundas, porém este é um problema que já espreitava as famílias há muito tempo. No Externato o tema é frequentemente abordado nas salas de aula, no Ginásio de Atenção, em reuniões com os cuidadores e no Ciclo de Conferências: “Os Pais na Escola”, que este ano comemora o décimo aniversário.

O agravamento desta problemática deve-se essencialmente à concentração explosiva de algumas variáveis. De acordo com a Dra. Rosário Ferreira, responsável pelo Laboratório Pediátrico do Sono do Hospital de Santa Maria, a alteração radical de rotinas, a menor exposição solar, a redução de atividade física, o maior consumo de ecrãs e a maior possibilidade de ansiedade provocada pela incerteza atualmente experimentada são os exemplos mais visíveis. A acumulação do teletrabalho parental é outra variável a considerar.

As funções do sono são bem mais vastas do que se poderia julgar. Durante o sono cuidamos do nosso corpo e do nosso equilíbrio psicológico, acautelando o bem-estar emocional e o descanso necessário ao desenvolvimento cognitivo. Por isso não custa perceber o efeito devastador das perturbações do sono e o modo como podem contaminar toda a dinâmica familiar.

A hora de deitar pode estar associada a um medo filogenético, correspondente a um período em que estamos mais vulneráveis, menos vigilantes. Este medo também pode associar-se a uma dificuldade em lidar com a falta de controlo, que pode ser geradora de insegurança.

A falta de controlo é sempre um desafio, seja, quando damos conta que não controlamos o destino dos nossos filhos, porque felizmente também eles têm uma palavra a dizer ou simplesmente porque têm uma personalidade. Seja quando somos confrontados com uma nova realidade, onde assustados pressentimos uma ameaça real. Preferíamos decidir e controlar e quando tomamos consciência dessa impossibilidade hesitamos confusos.

Ok, e soluções?

A abordagem deve ser multidisciplinar, porque dificilmente o problema é um exclusivo da criança. Por exemplo, o equilíbrio emocional do adulto deve ser uma preocupação. A influência que exercemos nos nossos filhos é direta e indireta. Assim, como naturalmente também nós somos influenciados. A intervenção deve centrar-se preferencialmente no contexto e em todos os elementos da família nuclear, o que vai ao encontro de uma abordagem ecológica (Bronfenbrenner).

Estamos sempre a insistir na importância da rotina. Cada família terá a sua e não estamos cá para fazer julgamentos:

  • Levantar à mesma hora, de preferência o maior tempo possível antes do almoço.
  • Respeitar o horário das refeições, que evidentemente devem acontecer sem televisão, assim como devem servir para reunir a família.
  • Manter o ritual de deitar, que deve prescindir de ecrãs e privilegiar a transição tranquila para o quarto. Enfim incutir uma rotina pode facilitar muito a vida à família.
  • Apanhar luz solar, se possível fazendo uma caminhada mantendo a aconselhada distância social, trabalhando perto de uma janela e dando preferência à luz solar.
  • Consoante a idade, pedir à criança para escrever (ex. diário) ou desenhar e evitar exposição desnecessária às notícias.
  • Procurar o equilíbrio aparentemente impossível entre afecto e disciplina (ex. em cada porção colocar a mesma quantidade de gramas de ambos os ingredientes). Eliminação de culpas desnecessárias, já basta o que basta.

Não vamos ser negacionistas, mas também não precisamos de ser dramáticos. Caso surja um problema, o primeiro passo para a solução é assumir a sua existência. A tristeza é por isso um espaço de elaboração, e tantas vezes como pais negamos essa experiência aos nossos filhos. Não queremos os filhos a cheirar a frustração.

Chegamos a cair na armadilha de resolver assuntos, que os nossos filhos seriam capazes de solucionar sozinhos. Sofremos muito com a tristeza dos nossos filhos. Estamos programados para que sejam felizes e por vezes caímos na tentação da felicidade permanente. Um equívoco.

Não faço aqui um apelo ao sofrimento na boa e velha tradição ocidental cristã. Perspetivo a tristeza não como um deixar os braços caídos numa atitude de desistência, mas como um espaço de reconstrução, onde se burila no tempo necessário uma possível solução. Um arregaçar de mangas de quem vai à luta.

Às vezes como pais temos de ser um pouco como a Rainha de Inglaterra. Às vezes o mais difícil é mesmo não fazer nada. Agora, por exemplo, “só” temos de ficar em casa. Dar espaço aos filhos para que possam fazer aquilo que são capazes pode ser um desafio hercúleo.

Caso as dificuldades persistam, os pais não devem hesitar em procurar ajuda profissional.

Contudo, a dificuldade em adormecer não deve ser sempre interpretada de modo absolutamente negativo, uma vez que pode traduzir uma resposta adaptativa. As alterações, especialmente no momento atual, podem originar resistências e perplexidades que necessitam de tempo.

E como o desenvolvimento saudável não anda constantemente em frente, também aqui podem ser necessários dois ou três passos atrás para depois poder avançar.

Votos de um regresso rápido, muita saúde e tranquilidade.

E não se esqueçam… mantenham a Covid-19 lá fora.

Gabinete de Psicologia Educacional do Externato João XXIII

Mauro Pimenta, psicólogo